Segundo o historiador francês Lucien Fèbvre, o anacronismo é “le péché des péchés, le péché entre tous irrémissible”(o pecado dos pecados, o mais imperdoável dos pecados) que pode cometer um historiador. Com essa afirmação, que se tornou axiomática, Fèbvre – fundador, com Marc Bloch, da famosa “Revue des Annales”, que a partir de 1929 renovou os estudos históricos em todo o Ocidente – apontou o que talvez seja, realmente, o maior perigo que ameaça o nosso ofício.
O anacronismo pode se manifestar quando estudamos determinado período histórico e, sem nos darmos conta disso, imaginamos os personagens daquele período como tendo conhecimentos, valores, modos de agir e de pensar da nossa época, ou de outras épocas históricas. Dessa projeção subconsciente decorrem erros de interpretação que podem alterar a fundo a objetividade do trabalho de análise.
O anacronismo pode se manifestar na utilização de palavras ou expressões fora do seu tempo. Por exemplo, quando lemos um romance ambientado na Idade Média e um personagem utiliza a expressão “ovo-de-colombo”; ou quando, num filme hollywoodiano, vemos fileiras de arqueiros da Roma Antiga dispararem suas flechas à voz de comando do seu chefe, que brada alto e bom som “Fire!”…
Às vezes, o anacronismo é bem sutil e difícil de ser detectado. Um historiador que examine uma carta escrita por um personagem histórico de quinze anos, do século XVIII, facilmente pode ser levado a imaginá-lo com as características que têm hoje os adolescentes dessa faixa de idade, sem considerar que o fenômeno que hoje conhecemos como “crise da adolescência” é recente na História e simplesmente inexistia na sociedade patriarcal e tradicional de antigamente.
Outro exemplo, ainda: no passado havia, obviamente, atração sexual e esse fator influenciava, como não podia deixar de ser, as escolhas matrimoniais; mas não havia algo que somente se generalizou no mundo nos dois últimos séculos, a partir do movimento romântico, que é o “casamento por amor”. O casamento, até princípios do século XIX, era pragmaticamente visto como um contrato em que, mais do que duas pessoas, uniam-se duas famílias. A atração física também entrava, entre muitos outros elementos, mas a mera atração sentimental geralmente não tinha grande papel na escolha. Em romances históricos e filmes, entretanto, é comum vermos, em personagens antigos, modelos românticos perfeitamente anacrônicos.
Outro exemplo de anacronismo temos em historiadores marxistas que, ao escreverem sobre a Idade Média, valorizam em demasia os aspectos econômicos e menosprezam as motivações religiosas das pessoas. De fato, a religião ocupava, na vida dos medievais, um papel muito mais marcante do que em nossos tempos de laicismo e indiferentismo religioso. O próprio Marx, aliás, já recomendava cautela a discípulos seus que, sem maiores reflexões, queriam aplicar a sociedades pré-capitalistas as regras do materialismo dialético.
São frequentes os anacronismos em livros de história, em obras de ficção e, sobretudo, em filmes e seriados televisivos aclimatados em ambientes históricos do passado. Exercício sempre interessante e culturalmente enriquecedor é procurar exemplos de anacronismo. No premiado filme “O Gladiador”, aparecem catapultas inexistentes na época e um cachorro de uma raça que somente existiria séculos depois. E disseram-me (não cheguei a reparar nesse pormenor) que, a certa altura, um romano, que assistia às lutas dos gladiadores, consultou as horas… no seu relógio de pulso! No filme brasileiro “Guerra de Canudos”, a atriz Marieta Severo representou – aliás, muito bem – o papel de uma sertaneja que luta em Canudos… com as sobrancelhas cuidadosamente trabalhadas e bem delineadas, como se tivesse acabado de sair de um salão de beleza!
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